Direito & Design
O PODCAST DE LEGAL DESIGN
NOTAS DO EPISÓDIO
Temporada
1
Episódio #
08

Inovação no Ministério Público

Ciência de dados, Jurimetria e Visual Law fazem parte da rotina do GATE - Grupo de Apoio Técnico Especializado do MPRJ. Você vai descobrir como membros do Ministério Público do Rio vem utilizando esses recursos para organizar e interpretar dados, construir estratégias e obter êxito em ações civis públicas. Uma conversa com o promotor de justiça Pedro Mourão e a UX designer Lis Mariano sobre iniciativas inovadoras e experimentais do MPRJ.

Introdução

[00:00:11] Legal Design no Ministério Público é o tema deste podcast. Eu fiz questão de trazer, depois que eu conheci o trabalho que vem sendo desenvolvido no Grupo de Apoio Técnico Especial do Ministério Público do Rio de Janeiro (GATE) pelo Rafael Lemos de Souza - promotor de Justiça - que coordena uma equipe fantástica da qual faz parte a Lis Mariano, uma das designers da casa. 

Eu conheci o Rafael e a Lis em um dos meus cursos de Visual Law, e fiquei tão impressionada com a atuação deles que passei a acompanhar mais de perto o que vem sendo feito no MP do Rio. Foi aí que eu conheci o Pedro Borges Mourão, promotor de Justiça que já atuou como secretário de Tecnologia da Informação e Coordenação de análise, diagnósticos e Geoprocessamento do Ministério Público. 

Nesse episódio eu converso com o Pedro e a Lis sobre o processo de Design, Visual Law, Jurimetria e como tudo isso tem sido usado para defender os interesses públicos em ações de grande repercussão, como é o caso da Linha 4 do metrô do Rio. A conversa rendeu muito e o podcast é longo, mas não dava para cortar nada. 

O contador de histórias jurídicas

[00:01:55] PEDRO - Meu nome é Pedro Borges Mourão. Sou promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, e, eu gosto sempre de me apresentar como um contador de histórias jurídicas usando sempre artefato de Jurimetria, Legal Design e Visual Law para tentar chegar a uma experiência do meu usuário menos utilitarista. 

Não é exatamente necessário que o leitor da peça jurídica não possa ter nenhum tipo de prazer na experiência de leitura dele. A gente consegue levar uma leitura mais agradável, porque leituras agradáveis transmitem melhor as ideias, e, mais importante do que isso, é muito importante - na leitura jurídica - que você seja capaz de causar um efeito no seu leitor, porque você está escrevendo para pessoas humanas.

by Freepik

E isso tudo começou lá atrás. A tecnologia entrou na minha vida quando eu era músico. Fui músico por dez anos, profissional contratado da Sony Music do Brasil, de uma banda de reggae chamada Dread Lion. Nessa banda eu tinha uma função tecnológica, onde eu comecei a trabalhar com programadores quando tínhamos que construir patchs de compressão de áudio para as guitarras e tudo mais, e ali o código entrou na minha vida. Alguns anos depois eu mudei de área, fui para o direito, me formei e advoguei, até o ponto em que fiz o concurso para o Ministério Público e fui aprovado.

A tecnologia sempre me acompanhou! Eu sempre fui o maluco do concurso, aquele que gosta de tecnologia, que fala nomes estranhos sem querer achando que as pessoas vão entender, e, que na verdade está cometendo um erro usando as expressões que as pessoas não entendem - não adianta só saber e falar termos técnicos se quem está te ouvindo não está entendendo.

Nessa jornada o Legal Design, Visual Law e o Legal OPS entraram na minha vida de uma maneira muito experimental e muito concreta. O primeiro marco de experiências foi quando eu estava na sub-coordenação de um lugar chamado Centro Integrado de Apuração Criminal (CIAC), que foi uma experiência de certa forma de Legal Design. 

O Ministério Público e a polícia trabalhavam juntos no mesmo prédio. O delegado ficava na sala ao lado e a gente tinha conversas, que eram necessárias no momento da leitura do inquérito. Ali tinha um grande volume de inquéritos que tinham sido removidos das delegacias - que foram transformadas em “Delegacia Legal” no governo Garotinho - e a primeira percepção que tive quando comecei a analisar os inquéritos era que metade correspondiam a casos de homicídio.

Sem querer eu já estava fazendo um pouco de pesquisa (superficial do desenho do design) e dentro dessa pesquisa ficou claro para mim que uma das grandes causas, senão a maior causa de insucesso dessas investigações de homicídio, era o fato de que a vítima não tinha sido identificada. 

Eu me lembro claramente que trabalhava ao meu lado um delegado excepcional que me ensinou muita coisa, Doutor Henrique Sampaio, um grande profissional. Em determinado momento “bati” na sala dele para reclamar, educadamente claro, de um inquérito em que a vítima não tinha sido identificada, e ele me falou uma frase que marcou o projeto - que foi criado logo depois. Ele me disse:

“Doutor Pedro se eu não sei quem morreu como é que eu vou saber quem matou”

Isso me deu um Insight, até porque ele estava coberto de razão. 

Então comecei uma segunda fase dessa pesquisa, também quase de maneira instintiva, onde aprofundei ela para identificar de fato os fatores críticos de sucesso que levavam à identificação e a sua não observância, que evidentemente é um insucesso daquela investigação. A gente identificou esses fatores com muita clareza e ali foi construído um primeiro modelo de processo de trabalho, onde eu aprendi a linguagem BPMN para construir fluxos de trabalho. 

ANA - Você pesquisava isso em sites? 

PEDRO - A pesquisa era: “método de gestão” no Google mesmo, mas também tivemos a oportunidade de trabalhar com outros profissionais da tecnologia que indicavam métodos como o BPMN, e isso acabou de fato servindo como uma luva. A gente construiu uma solução específica para identificar vítimas de homicídio.

Essa pesquisa foi muito interessante, inclusive, a gente visitou os campos de indigentes e entendemos as legislações municipais que levavam a indigência, o fato da pessoa estar sendo enterrada e não identificada - em alguns casos até identificado, mas enterrado como indigente sem nenhuma notificação para as famílias. Isso levou a um programa de notificação de famílias de desaparecidos que tinham sido identificados em casos de homicídio. Tivemos, inclusive, que instalar um posto médico no CIAC, porque havia muita comoção quando as famílias recebiam as notícias de que o desaparecido de fato estava morto. Tivemos que trazer uma policial civil psicóloga para começar a dar essas notícias, porque o volume começou a ficar muito grande.

Mas o interessante é que no momento em que implementamos aquele modelo de trabalho tivemos que descobrir como é que comunicavamos isso para uma equipe que era formada por agentes, escrivães, promotores e delegados, gente de toda origem e informação. E aí pensamos em usar ícones. Começamos a usar ícone de viatura policial, ícone de uma peça, ícones do período.

Hoje é um programa nacional do Ministério Público - o Brasil inteiro adotou esse programa (foi ganhador do Prêmio Innovare) - mas ficou muito claro que na verdade uma grande tragédia estava em curso. Onde a gente tinha uma grande negligência nos processos de identificação de vítimas que podiam ter sido identificadas, mas não foram, talvez por falta de insumos ou falta de material. O fato é que pessoas humanas estavam sendo enterradas como indigentes sem notificação da família, gerando uma tragédia nacional onde o número de desaparecidos só aumentava. 


Comunicando com o usuário

[00:09:37] ANA - Então mergulhar na pesquisa e chegar perto dos usuários, das pessoas envolvidas foi te gerando vários outros insights e outras necessidades do projeto. Gerando soluções, protótipos e até coisas que você deve olhar ainda hoje e pensar o que precisa melhorar. Tudo por chegar perto das pessoas, ir a campo e olhar o que estava acontecendo.

PEDRO - Exatamente!. 

Conhecer os gestores dos ossuários, dos cemitérios onde os indigentes estavam sendo enterrados foi muito importante. A gente chegou lá e entendeu como é que os ossos eram transportados, porque as direções municipais de origem sanitária têm uma regra para quanto tempo você mantém aquele corpo não identificado inumado. Depois se transfere para um ossário. 

O primeiro insight foi pesquisar se a vítima de homicídio não identificada constava como desaparecida. Sem o nome fica difícil fazer a comparação, mas tem outros elementos como tatuagens, deformidades, membro amputado, cicatrizes e traço distintivo. E isso, na verdade, foi a base da construção do banco de dados que suporta hoje o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid), porque quando você fazia a leitura dos autos de exame cadavérico a vítima estava como não identificado, mas tinha - por exemplo - uma tatuagem de um anjo surfando uma onda com um pôr do sol atrás. Bom isso não é exatamente comum, quantas pessoas tem uma tatuagem igual a essa? Ou seja, juntar esses elementos maximiza a possibilidade de identificação, de modo que hoje o programa funciona por inferência. Temos um algoritmo de automação que permite que a gente cruze automaticamente esses dados fazendo com que hoje o programa tenha índices de resultado fantástico. 

Mas a expressão humana de fato foi o maior aprendizado, foi um fator muito importante. Aquela busca desapareceu e em muitos momentos a gente pôde conhecer bem o que levou a esse desaparecimento e qual foi a história dele. Na verdade havia muitas nuances que a gente não imaginava, dentro desses desaparecimentos, e histórias das mais incríveis. Foi ali que eu fiquei fascinado pelo modo de contar e narrar histórias e a gente criou uma classificação original de causas de desaparecimento no Brasil para esse programa, desde conflitos entre familiares até o desaparecimento voluntário onde a gente localizava o desaparecido mas muitas vezes a pessoa dizia para não contar a família, porque não queria ser localizado. Isso gerou até uma  discussão jurídica sobre como tratar uma situação dessa. Qual era o âmbito da privacidade da pessoa que a gente poderia de fato trabalhar, ou não, diante da situação do desaparecimento.

Então, de fato esse contato com os atores e com as pessoas - conhecendo a dor - foi um elemento fundamental para conseguirmos trabalhar nesse “design”.


ANA - Então você começou no início. Pesquisando e conversando com outros “experts” de áreas que você não tinha conhecimento, como quem trabalha no ossuário. Essas pessoas te ajudaram a olhar o problema de fora, para que você conseguisse enxergar toda a profundidade do problema. E pegando um pouquinho do conhecimento de todas essas pessoas que trabalhavam neste problema foi possível chegar aos dados e montar uma estrutura para a identificação destas pessoas desaparecidas, e assim, chegar ao problema inicial que era a identificação do homicida.  

PEDRO - No começo sim, mas depois mudou. Porque a gente entendeu que primeiro eram inquéritos muito antigos, e a gente acabou invertendo um pouco a lógica. De fato, o inquérito visa identificar o autor do delito, esclarecendo o problema, mas como a probabilidade de resolução operacional desse homicídio decaia a cada mês que passava, ou a cada ano, o problema humano subjacente ali mais valioso era, na verdade, a tragédia familiar do desaparecimento. Isso acabou sendo o valor maior daquele projeto. Se a gente for contar em números, eu tenho muito mais orgulho de quantas tragédias familiares - que estavam sofrendo com aquele desaparecimento - a gente conseguiu minimizar do que por quantos homicidas que de fato identificamos e processamos. Ambos os números são importantes, mas certamente o valor humano maior estaria neste outro lado. 


Entretanto, isso foi muito relevante, porque acabamos evoluindo outro projeto - que também foi vencedor do prêmio Innovare - que foi o programa de resolução operacional de homicídios para a meta 2 da Estratégia Nacional de Segurança Pública (ENASP). Ali sim o foco era de fato solucionar o inquérito. Mas mesmo ali solucionando existiam dois lados que eram o de resolução do homicídio, e um outro, que era o lado humano de resolução do problema pendente. 


ANA - Então ir a campo, usar a empatia e ouvir os experts de outras áreas mudou completamente o rumo. 

PEDRO - Completamente! 

Começamos a identificar uma série de detalhes - que de certa forma eram facilmente superáveis - que estavam engargalando todo o processo. Foi uma maneira muito rica de aprender a dor lá no “chão da fábrica”. E foi daí também que surgiu o insight de usar um pouco de metodologia de gestão, como a Metodologia Lean e a Metodologia Kanban. Tudo isso foi incorporado no projeto e a gente começou a ter uma experiência jurídica de técnicas de gestão, que hoje está muito na moda, como o Legal OPS.


ANA - E isso foi em que ano?

PEDRO - Isso foi em 2011. 

Essa experiência foi muito importante para o aprendizado, embora eu não fizesse ideia de que todos esses nomes estavam ali envolvidos.

Depois da passagem pela Secretaria de Tecnologia, onde também tive que aprender muito pra sobreviver com tanta tecnologia, a gente chegou na coordenação de Análise de Diagnósticos e Geoprocessamento do Ministério Público. Ali tivemos de fato experiências mais estruturadas em Legal Design. Primeiro que a gente conseguiu montar um setor realmente multidisciplinar. Tinha um setor de Geoprocessamento, com geógrafos que realmente possuíam conhecimento profundo de ferramentas e dados georeferenciados. Toda uma área de desenvolvimento, com destaque para uma área de Algoritmos de Inteligência artificial em Python IR, uma área de banco de dados e uma área de design. 


Nesse cenário todo a gente começou a fazer vários produtos, introduzindo gráficos e dados - o foco era em gerar conhecimento através de um banco de dados - mas teve uma ocasião em que fomos procurados por um colega do MP, extremamente competente no sentido de coletar evidências e transformar aquilo numa narrativa. O fato é que a intenção era um inquérito civil onde se propagava a hipótese de que teria havido má gestão do carnaval no ano de 2008 onde houve aquele caos todos com canteiros derrubados, muitos crimes, tudo bem noticiado. 

E havia muita informação, a gente tinha horário, trajeto de bloco, depoimentos das associações envolvidas, dados da mancha criminal e a gente tinha depoimentos pessoais de comandantes de batalhão de policiais que de fato estavam ali no dia a dia. Isso tudo tinha se transformado em papel, imagem, áudio e texto e aquilo evolumava 300, 400 páginas talvez. O meu pedido foi uma ajuda para transformar aquilo em algo inteligível né. E a colega, já muito atenta, se preocupou com a transmissão daquela ideia, com o efeito que aquilo iria causar. 

O primeiro insight foi utilizar um story mapping. Eu lembro que estávamos pesquisando sobre, compramos ferramentas de story mapping editáveis e etc. A partir daí, chamamos a equipe de Geoprocessamento para interagir com o jurídico, ou seja, com as pessoas que tinham capacidade de narrar aquela história. E o story mapping ficou muito bom, contou muito bem a história. A gente conseguiu fazer as animações onde os blocos trafegavam pelos seus específicos trajetos nos seus específicos horários. Foi fantástico porque aquilo que a colega narrou ficou muito evidente. O story mapping, inclusive, foi transformado em um vídeo de 5 minutos, que contava uma história de 400 páginas de maneira muito direta e objetiva. O projeto ficou muito legal e foi muito bem aceito. Neste momento já sabíamos que aquilo era Legal Design. 

ANA - E ela deve ter ficado muito satisfeita com o resultado, né? 

PEDRO - De fato o feedback foi muito legal e deu segurança, porque ali era tudo muito experimental e num setor público muito tradicionalista. Então era uma ousadia fazer aquilo. Depois nós reproduzimos essa mesma técnica de story mapping em outras oportunidades e deu super certo, a ponto de colegas mais antigos e experientes levarem o story mapping em vídeo para despachar com o órgão especial do Tribunal de Justiça.

[00:23:31] ANA - E como isso foi recebido? 

[00:23:32] Olha eu posso falar pelo resultado do entregável. Qual era o desafio ali? Havia uma lei que tinha sido editada, promulgada e publicada que basicamente legalizava uma grande parcela do território do município do Rio de Janeiro que estava ocupado irregularmente. Realmente uma área muito expressiva, que deveriam inclusive ter uma recuperação ambiental - essas áreas em tese não poderiam ser regularizadas. Então, houve uma ação de inconstitucionalidade dessa lei que já estava em vigor, direcionada ao órgão especial dizendo exatamente sobre isso (inconstitucionalidade) em muitas e muitas folhas. A explicação foi feita com muita técnica e propriedade, sinalizando que havia um vício flagrante de inconstitucionalidade, porque havia ali danos ambientais irreparáveis que não podiam ser objeto de regularização. Isso foi submetida a um relator, que, em primeiro momento indeferiu a tutela de urgência para suspender a lei. Isso foi tido de certa forma como algo marcante, porque enquanto não fosse julgado o mérito as ocupações irregulares naturalmente iriam se expandir. E havia uma alimentação muito complexa de dados informativos como problemas de mata ciliar, problemas de nascente, e outros que tornavam uma teia muito complexa de informação. Então a gente construiu um story mapping, para facilitar o entendimento. 

E o resultado, para gente medir o sucesso do produto, foi algo especial. A aprovação foi unânime, reformando a decisão do relato, e a decisão de vigência de lei foi suspensa e está suspensa até então. 

ANA - E eles se manifestaram com relação à forma como tudo isso foi mostrado, o uso desses recursos visuais?

PEDRO -  Ficou mais nos bastidores. Mas ficou claro que o Judiciário - mesmo nos níveis mais experientes de desembargadores - recepcionou positivamente essa iniciativa. 

Então isso tudo tá aí na mesa pra gente trabalhar. Essa imagem de que o juiz, promotor, não vão entender porque eles são muito anacrônicos, parece ser bobagem. Eu acho que tá todo mundo muito receptivo para esse tipo de abordagem. 

ANA - Eu estava comentando que promotor assiste filme, séries, ou seja, não tem porque a gente fica preso numa linguagem que ninguém mais usa.

PEDRO - Exato. Esse ponto é muito importante. A gente às vezes esquece que do outro lado tem exatamente um ser humano como você, que tem filhos, fica doente, tem dívidas tem problemas na vida, etc. 

Incluindo designers na equipe

A gente estava falando do story mapping pois o primeiro que fizemos no carnaval foi um gancho de insight para os infográficos das ações da Linha 4 do metrô. E a maneira como a gente chegou nesse resultado foi muito autêntica. Essa mesma colega que eu venho dizendo durante o episódio, e que eu não canso de dizer o quanto ela é brilhante em construir essas narrativas conseguindo conectar essas evidências todas num amálgama que faça sentido lógico, nos ajudou mais uma vez para transformar uma ação civil pública muito bem estruturada, mas que pela complexidade ficou muito volumosa.

O projeto foi em um contexto muito interessante, porque já era final do ano de 2018 por volta do dia 10 de dezembro, e havia uma necessidade premente de uma tutela de urgência de indisponibilidade de bens dos réus de peso envolvendo ex-governadores e afins - os personagens desse episódio da Linha 4 do metrô.

De modo intuitivo unimos a mesma equipe para se debruçar sobre outro problema, na tentativa de outro bom resultado. E lá no CAD no MP mapas não tem parede, ninguém tem gabinete, eu sento lá na minha no meu cantinho como qualquer outro servidor e todo mundo se vê e se fala. Eu tava vendo a equipe de Geoprocessamento interagir com os assessores, promotores do caso e eu estava vendo de longe que o negócio não estava indo bem. Eu sentia o clima e percebia que não o diálogo não estava fluindo tão bem quanto da primeira vez. E como percebi que as coisas não estavam muito bem eu dei a ideia de chamarmos um designer para ajudar, porque ele talvez poderia construir uma fórmula, um logotipo ou algo que ajudasse a destravar aquela história.

ANA - Então até esse momento vocês não tinham um designer na equipe?

PEDRO - A gente tinha uma área de design, mas nós enxergávamos aquela área como responsável por logomarcas, coisinhas bonitas e pelo design do site que foi a primeira missão realmente cumprida com excelência pela equipe de design. Mas não tínhamos nenhum designer que interagia com a equipe de Geoprocessamento e com o jurídico.

Então eu pedi para um dos assessores do grupo do jurídico conversar com designers para ver se surgia alguma ideia. Para minha surpresa no dia seguinte o nosso designer então - o Will - passou horas ouvindo essa assessora e também a colega promotora. Eu observava ele e via que ele não falava nada, só escutava e fazia anotações. Ali na verdade ele  estava naquele processo de pesquisa que chamamos de briefing. 

E no dia seguinte ele apresentou uma Timeline contando uma história, que vem desde 1998. Ele conseguiu captar exatamente a essência daquela narrativa de trezentas páginas, que era o fato de que a cada momento que aquele contrato era aditivado havia um impacto na dívida pública, e, por consequência lógica aquilo impactava em investimentos essenciais do Estado, como saúde, educação e segurança pública. Esse era o tema essencial daquela história, e a partir disso ele construiu uma timeline , que inclusive, era um trilho de metrô. E começou a agregar naquele timeline milhares de artefatos que mostravam que houve termos aditivos e associava o momento cronológico do termo aditivo ao incremento financeiro, ao impacto na dívida pública e aos personagens envolvidos naquele ato. Isso facilitou a compreensão da história de uma maneira incrível. 

O fato é que esses infográficos foram encartados na ação civil pública e isso foi apresentado ao magistrado. E para nossa alegria, e na minha opinião pelo sucesso do interesse público, a tutela de urgentes foi deferida em um prazo de três a quatro dias. 

E para maior alegria quando fomos ler o despacho ficou claro que ele empregou na decisão somente as pessoas que estavam nos infográficos. Ou seja, a gente não teve a menor dúvida de que aquilo auxiliou a decisão e contribuiu para o momento em que é necessário transmitir tal ideia e causar o efeito necessário no julgador. 

Hoje a gente tem um leitor jurídico que é eminentemente desinteressado e aborrecido, não porque seja uma pessoa dessa forma, mas porque a visão é utilitarista - você quer ler a peça pra resolver um problema. 

ANA - As vezes você nem quer ler, né? Mas precisa ler porque é.

PEDRO - Exato! Você é obrigado a ler. Existe um tempo curto para você fazer aquilo e tem uma missão profissional para você realizar aquela leitura. Então quando você extrai esses elementos todos e facilita aquela missão utilitarista, eu acredito piamente que você também agrega valor à ideia, e, evidentemente impulsiona a compreensão e a cognição da pessoa para quem você está escrevendo. 

Como as áreas se conversam

ANA - No projeto do metrô vocês tiveram técnicos de Geoprocessamento, programadores, técnicos em estatística, promotores, especialistas em inteligência artificial e aí entrou a peça que faltava que era o designer. Ao longo desta jornada você trabalhou com todas essas áreas diferentes, fala um pouco para a gente como é que tudo isso se conversa e se complementa. 

PEDRO - Bom a gente foi entendendo, ao longo dessa jornada toda, a conexão potencial que havia em todos esses setores. Mas realmente só quando o desafio do produto chega que a gente consegue identificar a conexão perfeita. A área de estatística começou a conversar muito com a área de inteligência artificial quando os estatísticos começaram a aprender a linguagem “R”. A “R” é uma linguagem de programação muito poderosa onde você consegue codificar com expressões muito curtas, é um código muito leve e muito poderoso onde você manipula números e analisa textos de uma maneira muito eficiente, tão eficiente que até um advogado consegue aprender. 

Então essa essa interlocução entre as áreas começou a gerar potenciais novas. Os estatísticos começaram a entender que era possível fazer algum tipo de análise júrimétrica que não era da formação deles. O pessoal de Python começou a entender que tipo de análise estatística que era possível de incorporar no próprio código, para fins de atendimento das demandas do produto. E evidentemente que hoje toda a área de Geoprocessamento trabalha com dado o tempo todo evidentemente. Tudo isso tem que ser suportado numa área de banco de dados que vai fazer a modelagem e hospedagem. 

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Um dos projetos em que a gente conseguiu juntar provavelmente todas essas equipes é o projeto que hoje está em andamento do MP que são os robôs do consumidor. Este é um projeto bem interessante,  desenvolvido pelos colegas do Centro de Apoio Operacional do Consumidor. A proposta consiste na leitura de milhares de decisões e entendimento das expressões que estão contidas nessas decisões, que se identificadas podem classificar os casos de direito do consumidor. 

A objeto do produto consiste na identificação de demandas consumeristas individuais que estão sendo propostas em juízo de maneira massiva e que na verdade estão indicando que o Ministério Público tem que atuar nesse tema de maneira coletiva. Isso evidentemente tem uma potência de economia de dinheiro público enorme, pois em vez de processar 10 mil ações você processa apenas uma. Você vai na causa raiz e tem um processo de execução coletiva que é muito mais barato e eficiente. Ou seja, é um prato cheio para o Legal Design. 

O trabalho do GATE no Ministério Público

ANA - Pedro conta pra gente então, depois de toda essa jornada e esse trabalho multidisciplinar que acontece aqui dentro, onde tantas pessoas já foram “contaminadas” pelo design, jurimetria e pela ciência de dados, como é que o Ministério Público do Rio de Janeiro está posicionado nessa casa onde eu estou hoje. O que é que vocês estão fazendo? Para que as pessoas tenham uma ideia do que está acontecendo hoje aqui no Ministério Público. 

PEDRO -  O que a gente está vendo aqui são as sementes que foram plantadas começando a vicejar. A gente não pode perder de vista que empreender e inovar no serviço público não é fácil. Evidentemente que os “times” do serviço público são diferentes do mercado privado, que é muito mais ágil. Então isso exige muita paciência e muita tranquilidade. Então essas semente que a gente conseguiu plantar - no que tange a você utilizar o design como ferramenta jurídica - foram bem acolhidas aqui. O GATE que é o Grupo de Apoio Especializado Técnico do Ministério Público, é liderado já há algum tempo por um colega chamado Rafael Lemos que eu sou até suspeito para falar, pois sou muito fã do trabalho dele. 

ANA - Somos fãs! O Rafael só não está aqui hoje por questões de agenda mesmo. 

PEDRO - O GATE é frenético e o coordenador realmente é muito demandado, né?

É uma área que tem 19 especialidades em 7 núcleos. Atende desde o tema ambiental, de saúde, de engenharia e etc. É uma estrutura que permite que o Ministério Público consiga enveredar com segurança temas extremamente técnicos. O promotor não estudou evidentemente engenharia, medicina, nem questões mais técnicas ambientais. Então é uma área que a simbiose acontece. Esse processo não é fácil, acho que um dos grandes méritos da gestão do Rafael foi azeitar essa comunicação. Quando ele trouxe o design aqui para dentro foi muito útil, porque essa abordagem do design não é só para desenvolvimento de produtos, mas também de comunicação entre as áreas. O próprio ambiente de trabalho mudou muito. E principalmente, eu acho que o ponto mais importante, é a mudança de cultura do entregável do GATE - essa é minha percepção como cliente. 


ANA - Isso, vamos falar do que o GATE entrega. Porque a gente tem aqui um grupo com diversas especialidades além do Direito, como economia, construção civil e medicina, municiando promotores do estado todo do Rio de Janeiro, né?

PEDRO -   Perfeito. Muitas vezes os promotores precisam analisar uma hipótese técnica,  mas não possuem domínio sobre a matéria. Vamos imaginar uma compra de insumos massiva de medicamentos por uma determinada prefeitura. Você precisa entender se aquela técnica licitatória de aquisição teve algum tipo de má gestão e de superfaturamento, ou, se houve algum desvio em relação àquilo que determina a boa técnica. No fundo a gente está falando de uma discricionariedade técnica, que é um dos grandes elementos do direito administrativo. O que o GATE entrega é essa análise técnica. Para explicar na prática eu vou usar o exemplo de uma experiência muito boa que tivemos aqui. Eu estava na Promotoria - na coletiva da saúde do ano passado - enfrentando a crise que ainda está instalada na área da saúde municipal. A gente queria, e conseguiu, através de uma ação civil pública transparência dos dados de saúde, como estava o serviço de cada posto, de cada hospital, se tinha falta de insumos, se não foram feitos pagamento. Enfim, todo o aspecto orçamentário e logístico, que, era importante para demonstrar ao juízo que havia de fato uma crise instalada. 

Foram feitas diversas vistorias em unidades chave, graças a equipe de médicos muito experientes e competentes. Além dessas unidades identificamos aspectos que de fato demonstravam um problema na saúde pública, como o número de leitos ocupados, quantidades de cirurgias em espera e o volume dos medicamentos. Todos são elementos muito técnicos que depende de uma experiência profissional especializada.

ANA - Tem que ouvir um especialista da área médica, né? Porque o promotor de justiça não é obrigado a saber desse tipo de coisa. 

PEDRO - Exatamente! Ele pode até se aventurar e construir algo interessante, mas certamente vai ficar aquém da capacidade desses profissionais.

E o próximo desafio era transformar isso em um elemento de cognição que a gente pudesse mostrar para o magistrado, e aí que entra o design como um complemento. Nós tivemos basicamente três dias para fazer isso. Nós fizemos duas reuniões grandes para discutir sobre o assunto, e, no final contamos com uma felicidade muito grande por parte do design que conseguiu transformar isso em um veículo de informação. Pode falar o nome da designer responsável?

ANA -  Está aqui com a gente! A Lis.  Lis, você está aqui há quanto tempo? 

LIS - Aqui eu estou desde 2017. 

ANA - Então, entrou você na jogada para ouvir, entender e transformar essa informação, né?

LIS - Sim. Eu entrei quietinha, entre todos esses profissionais da saúde e os outros técnicos. Mas, até pela nossa experiência de trabalho junto, eu e o Dr. Pedro conseguimos conversar e conduzir bem o trabalho.

A gente tinha um final de semana para realizar o trabalho. Além de outras preocupações que tivemos que ter, por exemplo, a chegada do natal. Eu recebi os dados brutos na tarde de uma sexta feira, e a partir daí comecei a gerar insights. Quando foi na segunda de manhã eu chamei a estagiária e começamos a prototipar. Os dados estavam em várias folhas A4, então tivemos que separar tudo, e, com ajuda dos médicos fomos criando a partir da importância de cada assunto. Eu resolvi montar aquilo em uma estrutura de jornal, que estampava no topo a palavra “emergência”. Ali eu decidi usar poucos símbolos e figuras, e dei mais importância para o uso de pesos tipográficos de informação, cor e alinhamento - as coisas básicas do design.

No final, como só os médicos poderiam dizer se aquilo estava na ordem correta, eu apresentei para eles, nós conversamos e no dia seguinte já estava pronto.


ANA - Essa é a vantagem de trabalhar com todo mundo dentro de “casa”. Você tem médicos, promotores e designers, todo mundo junto.

Lis - Sim. E até pelo formato que a gente tem aqui no espaço de trabalho. Eu levantava da minha área de trabalho e conseguia falar facilmente com os médicos, promotores. Ou seja, sempre tem comunicação.  


Conclusão

ANA - Então depois de todo esse aprendizado e esses resultados efetivos colhidos, o que é que fica? E o que é que você pode deixar aqui de mensagem, para quem está começando a inovação, seja no setor público ou no setor privado

PEDRO -  A minha experiência me ensinou, primeiro, que o profissional jurídico é capaz e está muito mais próximo do que as pessoas pensam a aquisição deste tipo de conhecimento. Quantas vezes me pareceu impossível manipular dados, usar narrativa de cinema em petição, ou, sozinho conseguir baixar dados na internet, limpar, filtrar e transformar isso em visualização. 

Alguns anos atrás isso me parecia impossível e toda iniciativa minha que eu tinha nesse sentido - pois eu já identificava utilidade nesses recursos - eu tinha que parar e pedir para alguém de TI sentar ao meu lado e me ajudar.

Então você adquire essa autonomia criativa é fundamental. Adquirir o mínimo necessário para ter autonomia criativa foi transformador na minha vida e isso é uma sugestão que eu tenho para todo mundo. Dependa menos de setores que vão fazer você parar. Se você tiver poder de andar o necessário para conseguir chegar ao outro lado com uma proposta jamais estruturada - sabendo exatamente o que você quer e como deve ser feito - as áreas técnicas vão te auxiliar da maneira muito mais eficiente. É aquela formação “IT” que hoje todo profissional precisa ter, não só do jurídico. Por exemplo, eu estou fazendo um curso de linguagem R em jurimetria, com o professor José de Jesus da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ). E na classe, só duas pessoas são do mundo jurídico. A maior parte são de desenvolvedores de TI tentando entender o que é o jurídico necessário para poder trabalhar como um consultor jurimetrico. 

Ou seja, essa capacidade de adquirir conhecimentos além da sua formação base me parece ser o grande determinante hoje do mercado. Eu só acho que o grande desafio é você tentar identificar qual é esse conhecimento necessário, para não se convencer de que você precisa ter cinco graduações - o que vai tomar mais tempo do que ser produtivo na tua vida. O grande ponto é buscar pequenos nichos de formação técnica que possam te agregar de maneira eficiente, daquele conhecimento que você precisa para dar um salto na tua visão da tua área de conhecimento. O foco deve ser em alavancar a sua área de conhecimento trazendo complementos de outras áreas para poder se relacionar bem com elas.

ANA - E muita gente de dentro do Ministério Público te procura para esclarecer dúvidas? Vendo você como o cara da tecnologia, do design. Você virou uma espécie de consultor interno da equipe? 

PEDRO - Na verdade não muitos, mais alguns amigos queridos confiam no meu trabalho. “Puxar” a tecnologia é um papel importante, e eu tomo isso com muita responsabilidade. Você pode perguntar para meus colegas, eu sempre digo, quando eu gosto de um projeto, que eu posso ajudar com dados, por amor mesmo. Eu acho importante sempre ter me colocado à disposição dessas iniciativas, porque na verdade eu acabo aprendendo horrores. Quando eu me envolvo com esses projeto eu alavanco o meu próprio conhecimento.

Essa é uma dica também! Você sempre deve participar de projetos multidisciplinares.

ANA - E essa colaboração ela não é evidente dentro do direito, né? Essa prática Colaborativa independente de qualquer área de atuação. Você se envolver também em coisas que não estão na tua atribuição descritiva, mas que faz toda a diferença. Acho que a gente que está do lado do direito está aprendendo com os designers, porque os designers estão sempre colaborando, certo Lis? Acho que isso foi uma das grandes coisas que eu aprendi convivendo com os designers, e me tornando também. 

PEDRO - Sem dúvida. Eu costumo a dizer que nós aprendemos direito na faculdade do mesmo jeito desde o século 17. À maneira como se educa o profissional jurídico na academia não mudou muito nos últimos 500 anos. Se você pensar bem é mais ou menos a mesma coisa, a gente sai da faculdade aprendendo a escrever uma petição e pronto. 

E o fato é que não está em lei nenhuma que você precisa escrever desse jeito. Então vamos explorar novas maneiras e ter sempre essa métrica. Eu gosto sempre de medir pelo resultado! Deu certo? Causou efeito que você queria? Vamos buscar aquilo que funciona! 

ANA - É isso aí! 

Muito obrigado a vocês por essa visão, esse raio X do que é que está acontecendo no Ministério Público aqui do Rio de Janeiro. Como o Legal Design está fazendo parte da vida de vocês aqui. Quero agradecer muito a vocês, Pedro e Lis pela disponibilidade. A gente está aqui há duas horas, talvez mais, conversando sem se chamar de doutor. E você (Pedro)  fez questão de me falar que quando alguém te chama de excelência numa sala de audiência, é porque alguma coisa não está boa né? 

Pedro - Realmente não costuma ser coisa boa. 

ANA - É igual quando a mãe chama o filho pelo nome inteiro. 

Enfim, eu admiro muito o trabalho de vocês. Eu tenho entrevistado poucas pessoas porque eu quero justamente dar diversidade para que os ouvintes escutam, e, quero agradecer demais e declarar aqui o meu voto de fã do que vocês estão fazendo aqui no Rio. 




O que isso tem a ver com o direito?

Algumas sacadas que você pode usar na sua prática diária
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